[Verso 1: Eduardo] Aí, Edu, eu preferia nem ter acordado Sonhei que eu era um jogador fazendo gol no estádio Corria feito velocista atrás da bola Sem precisar ser empurrado numa cadeira de rodas Nasci morto, como num romance de Agatha Christie Enclausurado no calabouço do castelo triste Só se eu fosse Hitler em outra encarnação Pra ter músculo atrofiado como condenação Isso é pena pra estuprador, político filho da puta Pra gambé que põe flagrante no bolso da blusa É humilhante você me limpando, trocando minha roupa Me dando banho, comida, água na boca Os moleques da minha idade tão de skate, no half Na roda de break, dando moinho do baile Enquanto abrem o sutiã da namorada Eu com corpo com escara sonho com um colchão d'água No meu aniversário estraguei a festa Me revoltou não ter força pra a**oprar a vela Nem me equilibrar no carrinho de rolimã Deus deixou Pra ajudar minha mãe vendendo adesivo no metrô Queria ela ouvindo Roberto, e não o vigia do mercado "Não incomoda os clientes pedindo trocado" Saí da escola sem ler, sem saber multiplicação Vencido pelo riso dos alunos que me olhavam como aberração [Refrão: J. Ariais] Jogue a última flor Não chora quando o caixão partir É a ponte elevadiça do Castelo Triste Se abaixando pra eu fugir [Verso 2: Eduardo] O mundo cultua a idolatria do corpo perfeito Joga no hospital psiquiátrico o humano com defeito Sem triagem, seleção, diagnóstico Doente mental, físico, auditivo num depósito O vegetal com fralda geriátrica é descartável pra família Mas não seu cartão da aposentadoria Aí, cuzão preconceituoso, Beethoven era surdo Stevie Wonder é cego e encanta o público Depois de Einstein, o físico mais brilhante do planeta Stephen Hawking, o matemático preso numa cadeira Aqui te dão no estacionamento espaço reservado Mas não emprego pra comprar o carro adaptado Odiava ir na USP fazer hidroterapia O busão todo xingando enquando a rampa subia Dia 26 de março de 95 Queria esquartejar o roteirista do meu destino Porra, Deus, não tava bom eu na cama paralítico? Tinha que levar minha mãe num ataque cardíaco? Não pude no estádio empinar pipa, andar de moto Até pra pôr uma flor no caixão me puseram no colo Qual que é a pegadinha, sou seu rato de laboratório? Tá testando quanto um coração armazena de ódio? Bonnie não vive sem Clyde, nem o verso sem o poeta Romeu não vive sem Julieta, e eu não posso viver sem ela [Refrão: J. Ariais] [Verso 3: Eduardo] Tosse com sangue, febre, inflamação na garganta Edu, esquece o 192 e a porra da ambulância Chega no PS, é soro e inalação Liberam na madruga, e pra voltar sem busão? O estagiário que atende como clínico geral Receita pra leproso AS e Melhoral Após seis tentativas, internado com pneumonia Edu de acompanhante dormiu no chão 20 dias Empresário quer sua marca líder no comércio Anuncia no programa que ridiculariza o tetraplégico Lágrima no auditório, sonoplastia que comove Apresentador melodramático, em vez de prótese ganha IBOPE Mano, vai na AACD antes do baque do mesclado Vê quantos anos de fisioterapia por um pa**o Vê quantas sessões de fono por uma palavra Veja na Paraolimpíada a superação pela medalha O Patinho Feio não virou cisne como no livro da biblioteca Morreu depois da alta, da negligência médica Pela primeira vez tratado sem discriminação Esperei 18 horas o rabecão Não chora, Edu, o céu existe e eu tô feliz de ir pra lá Se não puder pisar nas nuvens, anjo tem asas pra voar Triste é quem fica entre preconceito, muletas, amputações Só não esquece de pôr no caixão o agasalho da Gaviões [Refrão: J. Ariais]