[Verso 1: Marcello Gugu]
Enquanto na Usp formulam-se teses de que se o nordeste fosse
Na sua imaginação rabisca no ar a chuva que o céu não trouxe
Da onde ele vem, o sol e a seca são inimigos cordiais
Que fazem o povo aquietar os sonhos em pequenos mananciais
Mas ele é flor de juazeiro, vive anos sem regar
Por que ali, o único lugar onde brota agua é o olhar
Teve o apreço dos céus em rezas de benzedeira
Pro berço dos poetas, o sertão se fez parteira
A mãe? Referencia de cozinheira e corona de romaria
O pai? Sanfoneiro devoto de padre Cícero e namorador de poesia
Viu do mundo a covardia, mas não se deixou abalar
Quando desejos viram desertos, a esperança se faz Yemanjá
Carrega um universo na imensidão do seu peito
Chamou a vida prum arrasta pé e agarrou a de jeito
Mas quando a vida vira escola, o aprendizado se torna rude
Faz das marcas do seu rosto profundas sangrias de açude
Viu um tempo de estiagem quando Sivuca se calou
E anjos disseram que seu pai não viveria pra ser avô
Pra sua mãe então perguntou, São Paulo é santo, faz milagre, mas transforma suor em prata?
E ela respondeu, como dizer que São Paulo é santo se São Paulo mata?
[Verso 2: Marcello Gugu]
Naquele ônibus nosso herói vira cordel sem aviso
Nem desconfiava que até na cidade a consolação ficava distante do paraíso
Aos poucos o dia nasce, numa preguiçosa sabatina
E ele que já foi rebeldia Lampião, hoje não é nem birra lamparina
O ônibus forrozeia pela estrada e o céu cinza faz da crença jus
Que cada nordestino é Cristo, porque São Paulo sempre é cruz
Mas ele vem sem medo e sem chance, 10 anos atrasado
Se um dia foi figura de cortejo, hoje magro igual o gado
Seco como carne de sol, vida simples sem esmero
Vítima de um governo que acha que salva o mundo com o programa fome zero
Soweto e Haiti não estão a milhares de léguas
Estão presentes em cada metro quadrado de uma seca sem trégua
Traz bandeirolas de preces, trincheiras de stress
E faz do cordel um Projac, onde a vida é fantasia que acontece
Bom samaritano tem o suor como honra ao mérito
Lamentos sertanejos nascem cada vez que a seca abre um inquérito
Ele já foi feira de mangaio, carambolas em tom pastel
Bolo de rolo, baião de dois, felicidade a granel
Já foi manhã céu seda azul, em cenários de cinema
Onde migalhas da vaidade enfeitavam um sertão poema
[Verso 3: Marcello Gugu]
Na rodoviária angustia e sereno marfim
Lavam teu coração como as escadas do nosso Senhor do Bonfim
O que um dia foi folia e sorriso sabor cuxá
Hoje é uma suplica cearense, feita de vontades de voltar
Ele mal sabe orar, mas mantem a fé sempre por perto
Traz rugas de gente sofrida, bolsos vazios e braços abertos
Na cidade dos espertos onde o amor pode camuflar aversão
Sua moqueca de sururu virou as sobras do mercadão
Comentários de chacais são drinks de deboche e mágoa
Pois seus corações de cactos não veem valor em pingos d'água
O futuro tão promissor virou o cavalo piancó
Que em cada trote manco reduzia seus almejos a pó
O toque do seu despertador traz a tona o que cada manhã promete
Mas, celebrar a vida na caatinga ensina a fazer da poeira confete
Aprendeu a ler com propagandas e vitrines
Sonhava em com as modelos dos anúncios de biquíni
Queria ter conhecido um tal de, Santos Dummond
Quando no aeroporto de Congonhas foi contratado como garçom
Montou a vida a prestação e vivia sorrindo
Por que cada manhã é um nascimento, e da vida nascer é o momento mais lindo
Foi trabalhador, pai de família, do fel fez creme
Viu homens invisíveis como ele encherem trens da CPTM
Dançou, sorriu, sentiu, chorou
Cantou, sofreu, perdeu, ganhou
Tomou banho de chuva tocou os joelhos no chão
E de desejos contidos fez teu sagrado coração
Hoje velho na oração, diz a frei Damião, ói
Da vida eu provei de tudo e se morrer hoje morro herói