1. Na noite que se avizinha, um mar de gatos com cio invade os sotãos, ensanguentando as memórias com a dor pungente dos dias em que o gume, o terrível gume das horas afiadas, rasgava os espíritos. Já o clarão das ruas toldava os cérebros com angústias venenosas e vertigens de suicídios sonhadores, na vontade de fugir ao inóspito vazio do tempo da ausência... 2. Acção! Isto é um a**alto!... Todos de mãos no ar! Não quero nem um gesto... Pa**a p'ra cá esse vil carcanhol Para irmos daqui sem funerais!... Anda homem ou és um caracol?! Não quero ficar aqui à espera dos maiorais... (Vai junto à porta ver se o caminho está livre para a nossa saída...) No chão! Quero toda a gente no chão... Assim!... Vamo-nos pirar!... Já! 3. Eu sou estas mãos que se fendem na areia como um velho pau A serpente que se arrasta o corpo em a**altos ao olho do cosmos Tudo vem a mim a escura escama dura dos monstros do fogo Um ventre de rei em corcel alado de freio nos dentes Flash Aí está Stanislau Belo como estrela do mar gigante em asilo de lepra A tirar a espinha às horas Vem Vem Vem Flash Flores carnívoras pa**am sua língua no ventre do lacrau Os seus lábios grossos deixam escorrer o es**ma quente Prova a minha orelha Prova o meu caixão A morte ronda A vida cresce Floresce Flash Amanhece 4. Estou farto disto Não posso mais Todos os dias Pa**am iguais Como um fantasma Com escorbuto Corro a cidade na busca de um xuto Speed ou heroa Coca ou morfina Tudo me serve Como vacina Desde que traga a santa narcotina Furam-me os ossos Caem-me os dentes Reflicto ao espelho sinais indigentes Mas o pavor É da ressaca e da dor Já desvairado Com tanta volta Sempre sem ver Poda ou recolta Fico em suores Vem-me a carência Sinto-lhe a mão sem qualquer clemência Pica-me as pernas Prende-me as costas Fere-me os tímpanos Em dores expostas No rito ansioso do coçar das crostas Não posso mais Tudo o que eu quero É ver-me livre deste ruim desespero Um caldo tal Que seja um ponto final 5. O rei mimado está Feliz e sem rival E verte para mim Cem gotas de água e sal Aos saltos e pinotes Percorre agora o chão Mas pára p'ra lutar À vista de um dragão Batuques e tambores Ilustram o combate sem dó Alguém me af*ga a lã Me puxa num trenó Me leva na manhã Do sol-e-dó Acordam os amores No reino da paixão São elfos e duendes que Nos levam pela mão As folhas são azuis O sol vermelho está A relva sua e diz que A vida é um sofá p'ra gozar São monstros de cordel Histórias de encantar No espelho de Babel A festa não tem fim Volteia agora o vento E eu peço um gin
6. Vamos lá então juntos recitar Este belo acordo que nos vai ligar Juro pela vida nunca me trair Juro pela vida sempre resistir Juro pela vida nunca obedecer A qualquer vontade fora do meu ser Juro pela vida sempre acreditar No poder sagrado que nos faz amar Juro pela vida sempre contrapor O valor da festa contra o tédio em vigor Juro pela vida todo me entregar À paixão do jogo do corpo e do criar Radical radical radical Hei-de ser no agir no pensar Só na luta há festa só na luta há gozo Para ter um destino aventuroso Eis o Graal nosso Graal O mundo é nosso vamos a ele O mundo é nosso não há que ter medo O mundo é nosso vamos com ele brincar 7. - Ouviste o que disse o aquecedor? - Como? - Repara na luz. Repara como muda de intensidade... Está a dizer qualquer coisa! - Mas isso é um aquecedor, não fala!!! - Shut!... Não ouves o murmúrio?... Está a dizer qualquer coisa! - Mas isso é o barulho da electricidade a pa**ar... - Shut!... Escuta!... - Deixa-te de tretas. Vamos embora! - Não posso. - Não podes?!?... - Tenho de ficar ao pé da luz. Está a querer dizer-me qualquer coisa! É importante!... - Importante?!? Ainda acabas é na Casa Amarela a apanhar choques eléctricos... - Pois eu acho que há aqui uma entidade qualquer, um ser de outra dimensão, uma energia cósmica, a tentar estabelecer contacto comigo... Repara no cintilar, nas pequeninas explosões de luz... Isto não é electricidade! - Não!... Isso não é electricidade... São miolos a fritar! - O quê? - Disse que tens os miolos a fritar. Deve ser do calor... - Por acaso estou cheio de frio!... Não queres ligar o aquecedor? - Mas tens o aquecedor no máximo! Nem sei como não te queimas, aí tão perto... - Shut!... Escuta!... - Bom, vou-me embora! Depois conta-me o que te disse o ET... 8. Assomados, com o andar titubeante das vítimas da realidade absoluta, desfalecemos em convulsões de electrochoque no turbilhão da engrenagem triturante que nos transportou em sucessivas oscilações sísmicas para o apaziguamento da indiferença e o amargo isolamento da solidão. Nada é o que era, nada foi o que sonhamos, apenas visões esfumadas ao contacto da memória, apenas imprecisas impressões de um tempo gasto pela usura. Tivemos o mundo, fomos o mundo... Salve, cadáveres brancos da inocência! Salve, corpos belos do amor! Salve, feiticeiros da embriaguez permanente! Salve, magos da existência não fragmentária! Salve, pederastas do desejo, junkies do caos, prisioneiros da liberdade! Salve, irreprimível lúdico! Salve, criadores de vida, amantes da infância, viciados do presente! Salve, orfãos perdidos! Salve! Salve! Salve!