Rimas, guitarras distorcidas, sintetizadores, teclados, samplers, pick ups, metais: esse são os elementos que resultaram na apresentação do Síntese e Kiko Dinucci com Thiago França e Ak**ez no programa Manos e Minas da TV Cultura, no início de dezembro de 2014. Depois de um convite da produção do programa, os músicos se reuniram para produzir composições para uma apresentação exclusiva, como comentou Ak**ez: [De início] a gente não tinha ideia de nada [sobre as composições] [...] A gente ia fazendo as coisas: bases, programando… O Neto dando uma ideia dos beats; o Kiko ia metendo uns riffs; o Thiago França chegou depois. Na verdade a gente se encontrou mesmo para experimentar, sem essa preocupação de pré-definir o que seria essa apresentação.“ A ideia do programa foi trazer um show especial para o fim de ano. Com letras de autoria do Neto, algumas já lançadas em outros trabalhos, entre discos próprios e participações, e outras inéditas. A produção foi compartilhada por todos, em torno de 4 sessões. Kiko Dinucci é um experiente arranjador de músicas de Rap, e diz que “a verdadeira escola de música é tocar e trocar [produções] com alguém”. Como músicos, todos têm grande experiência, entre lançamentos próprios no Rock, no MPB, no Afropunk do Metá Metá, além do Projetonave do Ak**ez, que já existe há 17 anos, e os discos do Neto em seu trabalho com o Rap, o Síntese
A primeira música apresentada é “Disparada”, composição que ainda não foi lançada oficialmente por Neto, e traz uma indignação com o crescimento desenfreado do setor imobiliário, em contraste ao enorme número de desabrigados: “[...] são prédios sobre túmulos/ [...] Sempre somem aqueles que aqui constroem edifícios/ Pra ostentar, pra sustentar os seus benefícios/ Malefícios nunca os comove”. A composição traz a marca dessa apresentação: com uma guitarra muito distorcida e fora de ritmo, Kiko dá um ar de desalinhamento à música; os loops de samples de Ak**ez soltam um tom grave que lembra um baixo, enquanto o pocket piano de Thiago França emite ruídos agudos, sem muita sintonia melódica. Ao final das rimas de Neto, os elementos eletrônicos se combinam e montam barulhos que soam como máquinas da construção civil e sirenes, como se o desconforto tratado na música fosse transcrito sonoramente. É nesse desalinho e texturas de som, fundamentalmente experimental, que se baseia a Música Torta apresentada nas canções
A segunda faixa também é inédita: “Explanação”. Nesta, as batidas são mais familiares: beats lo fi, que a**emelham-se bastante as de trabalhos anteriores do Síntese. Nesse segundo momento a guitarra fica em segundo plano, mas ainda dissonante e estranha. Já o sax soprano de França dá uma levada jazzista, o que lembra as notas em épocas de composições tristes e minimalistas de John Coltrane; enquanto Neto rima sobre ignorância e comodidade de pensamento: Tonto, não se acha as linhas enquanto se perde nos pontos/ A vida pa**a e nós não vê reclamando que não acontece nada/ Laça, traça o ensinar que nós não quer aprender” E também a respeito de alienação: E a verdade é a**ociável embora eles insistam em dizer não/ Quem desaprendeu sentir, ouvir e abominar o pecado/ Seduzido, um enganado serve mais que um desavisado” A terceira faixa é totalmente instrumental, som mais próximo das produções que os músicos já fazem em suas carreiras. “Crepúsculo” é tocada com o sax soprano dando uma levada de free jazz, a**im como na música anterior. Ak**ez traz batidas em loops, remetendo às colagens intimistas do Trip Hop, e as guitarras em tons agudos com delay fazendo soar um post rock estilo Talk Talk. Tudo isso faz a canção se tornar algo como o fusion, tratamento especialmente maestrado pelo Flying Lotus. Em um certo momento, o sax evolui com tons mais altos e a guitarra acelera, e então se cria uma atmosfera sombria de um ambiente nebuloso e denso, como sugere o título da canção. Talvez de uma floresta fechada ou da “selva de pedra”, em noites frias e solitárias de grandes metrópoles. É nessa ambientação que se cria os sentimentos que melhor definem esse som: a inquietação, a tristeza, o intimismo e a solidão
Na sequência, vemos “Só Neurose”, letra que já se encontrava no último disco do Síntese, “Sem Cortesia: Vagando Pela Babilônia”, de 2012. Neto já começa incisivo: “vagabundo é só neurose, mermo! vai negar?”. As rimas dão um tom pessimista e devastador para o vício em drogas: [...] é se afastar mais da razão, olhar pra dentro e não achar/ Mais nada pra se apegar, argumentos, motivos/ [...] E o ódio tomava seu corpo e a chance de ter razão/ [...] Presta atenção no que você se apegou, vê se compensou/ É fraqueza ser mais um vilão que a frustração fabricou” Agora a guitarra está mais grave, o que contrasta com o agudo da flauta artesan*l. A melodia é composta com um sample de bateria, algo como um drum experimental. O ritmo se mantém em uma ambientação, até a guitarra crescer com riffs mais pesados, e então, retornar mais uma vez para a ambientação. O conjunto, ao final da música, solta um som que lembra populares instrumentos indianos, como num show de encantamento de serpentes
“Aí, maluco!, o crime é estado terminal!”. Neto já anuncia que as próximas rimas serão quentes. Ele traz sua lírica de forma surpreendente: incisivo, progride e “atira” os versos até o ápice da excitação. Como o Kiko falou na entrevista, as rimas de Neto “são mutantes durante a música”, variando a entonação e elementos linguísticos. “Estado Terminal” é a quinta canção apresentada, e ainda inédita, lançada especialmente no programa. É mais uma letra nos moldes do Síntese: curta, direta, sem refrão, intensa Se os verme pá vão devolver uma pá/ Das treze que tá no pente e outras trinta pra encher/ Ta! Ta!/ Que é pra acertar/ Alertar pra não flertar/ Ha! Ha!, pra não chorar/ Se apontar tem que apertar” Em meio ao desalinho dos riffs tortos da guitarra e do beat, o pocket reflete outra sensação: com as intercalações da batida do synth, é como se Thiago França reproduzisse o famoso barulho de um monitor de batimento cardíaco. Ao fim da letra, o zumbido fica contínuo: é o fim anunciado, quando o barulho significa que não há mais batimentos e o indivíduo está provavelmente morto. É o estado terminal!
“Eis-me Aqui” é canção feita por Neto em parceria com Moita, e cantada por Leo no disco “Sem Cortesia”. Aqui a composição do grupo está menor: Neto rima somente acompanhado da batida, melhor trabalhada que a versão do disco, e que ganha um destaque maior com a interpretação comovente do rapper. Os versos falam de desalento e dor: [...] ao relento, desatento/ Sentimento/ E a impressão que dá que é hora do arrebento/ Então fazer o que, enfrento/ Você quer o que, por quê?/ Não tá isento. Olha o mundo em volta vai correr do quê?/ Sem ter pra onde ir/ Ter que entrar no bonde e ir” A música termina com a repetição do último refrão, sem o acompanhamento do beat, demonstrando todo o sentimento e espiritualidade que Neto traz às suas músicas, traço mais significativo de seu trabalho: Eu vim pra vida e não pra morte/ Quer viver aqui?/ E aqui independente do que acontecer, seguir/ Na fé, respeitar o ancião, que é Senhor e meu pai e seu pai/ Eis-me aqui.” Na sequência, finalizando o programa, vem “Pais e Filhos” - título que pela primeira vez não nos leva ao rock chato dos anos 80. O programa não poderia terminar de forma mais brilhante: os versos já mostrados em um vídeo amador do Síntese, começam com uma dura sentença: “pais e filhos são anjos e demônios!... Não, só demônios.” É uma condenação ao conservadorismo da educação familiar, explicitada já no verso seguinte: “dita a boa educação é maldição hereditária”. Logo após os versos introdutórios, é lançada a batida, um loop reverso, recurso bastante usado no estilo drone, em produções computacionais, como os trabalhos da Holly Herndon e Ben Frost. Isso dá um toque futurista ao som, em contraste com o teor da composição
Nas rimas, Neto continua seu discurso sobre problemas familiares: ensinamentos já milenares, e portanto, retrógrados, sendo perpetuadas de pai pra filho - “que gerações vieram de Adão, primeiro homem que errou” -, em contraste com a falsa ilusão de progresso e modernidade, talvez pelo processo de industrialização, evolução da economia e tecnologias - “mundo fingiu que andou pra frente/ confortável pra nós” -, e afirma que os problemas da humanidade são culpa somente da própria humanidade - “o Senhor mostrou pra criação que o inferno é criação nossa/ Monstro de carne, osso e sangue/ Esqueceu que o mundo era roça”. Num sopro de sabedoria, o rapper pa**a uma lição, como se fosse a resposta para os problemas citados: Filhos, eu e sua mãe somos parte, peço que conto/ Conte aos seus!/ Tempos difíceis virão/ Instrua-os a não fugirem!/ Deixe as hienas rirem!/ Dê a elas o seu perdão!/ Pois não terão pra onde irem/ Por isso coisas dirão pra tentar/ E muitos se iludirão/ Mas não deixe a te iludirem os que a vós não ouvirem.” Com todo seu ímpeto, Neto ainda sintetiza sua mensagem ao final: “o fim culmina e o novo início. E a gente só vai viver o depois se a gente se amar hoje. Só amem! Essa é a cura de tudo.”